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DOCEIRA DOMÉSTICA
     Em 1877, a Livraria de J.G. de Azevedo, estabelecida na Rua da Uruguaiana, nº. 33, no Rio de Janeiro, editava a “Segunda Edição Correta e Aumentada” do livro “DOCEIRA DOMÉSTICA ou Coleção de Receitas, pela maior parte novas, de Doces, Pudins, Tortas, Conservas, Pastéis, Licores, e em geral Tudo Quanto Pertence à Arte do Confeiteiro e Pasteleiro, Apropriadas ao Uso das Cozinhas Particulares”, da autoria de D. Anna Correa. São 222 páginas encadernadas com lombada decorada em dourado.

     Esta obra foi comercializada pela Livraria Americana de Carlos Pinto & Comp., Casa editora e importadora, Fundada em Pelotas em 1874 e filial em Porto Alegre em 1879. No selo aposto na contracapa a Livraria Americana avisava a sua seleta clientela: "Não se fia positivamente A NINGUÉM” (sic).

     O editor no seu Prólogo apresenta a obra com o seguinte texto que parece encomendado pela sociedade pelotense:

     “A Doceira Doméstica é a primeira parte de uma série de livros que a autora

tem entre mãos e a que pretende dar o nome de Biblioteca da dona de casa brasileira.
     As receitas contidas na presente publicação são pela maior parte novas em livros deste gênero, apropriadas ao gosto da cozinha brasileira e experimentadas pela autora. Porém, não se limitou ela somente até ai, escolheu na confeitaria estrangeira o que de melhor havia, e, experimentando cada receita de per si, não se esquivou ao trabalhou de vertê-las das línguas inglesa, francesa, italiana e alemã.

     É provérbio antigo e muito certo, que a economia é a origem da riqueza, e ninguém ignora que dos poucos fazem-se muitos; ao mesmo tempo que nas nossas casas há outra perfeição e asseio nessas gulodices que tanto agradam aos maridos e aos filhos, e por isso, e em atenção a todas essas conveniências, nada poupou a autora para que nesta Doceira Doméstica a dona de casa brasileira encontre, não somente as boas sobremesas, como o suficiente para poder apresentar nos seus chás, em noites de soirées, batizados, partidas etc., o bastante para obsequiar os seus convidados.”

     Nas primeiras décadas dos oitocentos a tradição doceira foi se formando a partir dos costumes trazidos pelos imigrantes e colonizadores portugueses que povoaram e industrializaram nas margens do Pelotas, vindos da Vila de Rio Grande, da Colônia do Sacramento, do centro do país ou da Europa. Entretanto, na segunda metade do século XIX as donas de casa, já radicadas na zona urbana de Pelotas, estavam a par do que havia de melhor na doçaria européia através de publicações nacionais editadas no Rio de Janeiro e oferecidas nos armários das livrarias pelotenses. Para obtenção dos melhores açucares e farinhas na época não faltavam recursos na economia do charque, nem fornecedores nacionais mais ao norte ou estrangeiros. Nestas circunstâncias firmou-se a tradição dos requintados doces artesanais caseiros oferecidos nos refinados salões da cidade.


(*)Jean Baptiste Debret (Paris, França 1768 - idem 1848) integra a Missão Artística Francesa, que vem ao Brasil em 1816. Instala-se no Rio de Janeiro e, a partir de 1817, torna-se professor de pintura em seu ateliê. Em 1818, realiza a decoração para a coroação de D. João VI, no Rio de Janeiro. De 1823 a 1831, é professor de pintura histórica na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, atividade que alterna com viagens para várias cidades do país, quando retrata tipos humanos, costumes e paisagens locais. Por volta de 1825, realiza gravuras a água-forte, que estão na Seção de Estampas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em 1829, organiza a Exposição da Classe de Pintura Histórica da Imperial Academia das Belas Artes, primeira exposição pública de arte no Brasil. Deixa o Brasil em 1831, retorna a Paris com o discípulo Porto Alegre. Entre 1834 e 1839, edita, em Paris, o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, em três volumes, ilustrado com aquarelas e gravuras produzidas com base em seus estudos e observações.

Fonte: www.cliohistoria.hpg.ig.com.br – 29/10/2007

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Vendedoras de pão-de-ló – Debret

COZINHEIRO NACIONAL
     Ainda em fins do século XIX, a Livraria Americana, agora com filiais em Porto Alegre e Rio Grande, oferecia aos seus clientes o livro “COZINHEIRO NACIONAL ou Coleção das Melhores Receitas das Cozinhas Brasileira e Européias”. O subtítulo era assim complementado: “Para a preparação de sopas, molhos, carnes, caça, peixes, crustáceos, ovos, leite, legumes, pudins, pastéis, doces de massa e conservas para sobremesa; acompanhado das regras de servir a mesa e de trinchar, ornado com numerosas estampas finas.” A obra com 498 páginas pertence a H. Garnier Livreiro-Editor, estabelecido do Rio de Janeiro na Rua do Ouvidor, 71, e em Paris na Rua dos Saints-Pères, 6. Editada em português, foi impressa na Tipografia Garnier Irmãos, em Paris.

     O prólogo do Cozinheiro Nacional é um verdadeiro manifesto nacionalista com o cívico propósito de libertar a mesa brasileira do jugo cultural estrangeiro. Através da culinária se expressam os gostos, os sentidos e o estado de alma de um povo. Vale a pena ler na íntegra a parte inicial deste prólogo, que deixa claro o objetivo dos autores:

     “Cozinheiro Nacional” tal é o título que escolhemos para esta nossa obra; e quão grandes são as obrigações que ele nos impõe!

     Não iremos por certo copiar servilmente os livros de cozinha que pululam nas livrarias estrangeiras, dando-lhes apenas o cunho nacional, pela linguagem em que escrevemos; nem tão pouco capeando a nossa obra com um rótulo falso, iremos traduzir literalmente livros que se encontram em todos os paises, tomando a estranha vereda de um plagiato vil que venha cortar pela raiz a importância que ligamos ao nosso trabalho e a utilidade que o público tem direito de esperar dela. Nosso dever é outro; nosso fim tem mais alcance; e uma vez que demos o título “nacional” à nossa obra, julgamos ter contraído um compromisso solene, qual o de apresentarmos uma cozinha em tudo Brasileira, isto é: indicarmos os meios por que se preparam no país as carnes dos inúmeros mamíferos que povoam suas matas e percorrem seus campos; aves que habitam seus climas diversos; peixes que sulcam seus rios e mares; répteis, que se deslizam por baixo de suas gigantescas florestas, e finalmente imensos vegetais e raízes que a natureza com mão liberal e pródiga, espontaneamente derramou sobre seu solo abençoado; mamíferos, aves, peixes, répteis, plantas e raízes inteiramente diferentes dos da Europa, em sabor, aspecto, forma e virtude, e que por conseguinte exigem preparações peculiares, adubos e acepipes especiais, que somente se encontram no lugar em que abundam aquelas substâncias, e que são reclamados pela natureza, pelos costumes e ocupações dos seus habitantes.

     Tal é a espinhosa tarefa que pesa sobre nós. Declinando de entrarmos em longas divagações a respeito da arte culinária, sem querermos outrossim, copiar ou traduzir encômios feitos a esta tão útil quão importante especialidade da vida doméstica, vamos imediatamente entrar ao assunto que nos ocupa.

     Somos os primeiros a reconhecer que apesar de nossos melhores esforços, ficamos muito aquém da meta a que desejávamos atingir; mas ficar-nos-á pelo menos a satisfação de termos trilhado um novo caminho, que outros mais recomendados do que nós, percorrerão com vantagem e mais feliz sucesso.

     E se é verdade o que dizem muitos filósofos, que a arte culinária é a bitola que serve para marcar o grau a que se tem elevado a civilização de um povo, (como o termômetro indica a elevação do calor atmosférico), seremos forçados a tirar a ilação necessária, que mesmo debaixo deste ponto de vista, o Brasil ocupa um lugar honroso entre as nações cultas e civilizadas, pela apresentação de um livro em que se acham enumerados os diversos adubos de suas imensas produções.

     É tempo que este país se emancipe da tutela européia debaixo da qual tem vivido até hoje; é tempo que ele se apresente com seu caráter natural, livre e independente de influências estrangeiras, guisando a seu modo os inúmeros produtos de sua flora, as esquisitas e delicadas carnes de sua tão variada fauna, acabando por uma vez com este anacronismo de acomodar-se com livros estrangeiros, que ensinam a preparação de substâncias que não se encontram no país; ou só custosamente podem ser alcançadas.

     Demais somos todos os dias testemunhas das mistificações por que passam continuamente as pessoas que querem aperfeiçoar suas preparações culinárias; mandam comprar um livro que os guie, e acham-se imediatamente embaraçadas à vista da longa enumeração das substâncias, que desconhecem e que não existem no país.

     Vêem-se portanto forçadas a renunciar semelhante obra que lhes fala de tubaras, cogumelos, alcaparras, objetos estes que nunca viram, nem podem alcançar, e cuja substituição não sabem fazer; da mesma maneira falam em faisão, cotovia, galinhola, lebre, truta, tenca, salmão, carpa etc., sem nem sequer dar o nome do animal do Brasil que lhes corresponda, e cuja preparação possa ser idêntica.

     É este motivo por que sem desprezarmos as substâncias da Europa, indicadas em todos os livros que tratam desta matéria, lhes ajuntamos as do país, de sorte que à primeira vista conhecer-se-á que todas as caças, peixes, legumes e frutas que se encontrarem reunidos em um só artigo, não só se preparam da mesma maneira, mas ainda podem ser substituídos uns pelos outros.
     ................................................................................................”

RELATO DE CASO

     Relatamos aqui nada de extraordinário, de inusitado. Muito pelo contrário, trata-se de ilustrar um costume familiar na sociedade pelotense do final do século XIX até às primeiras décadas dos anos novecentos, que teve o mérito de registrar a tradição oral dos doces de Pelotas para livros caseiros de receitas.
     É o caso do Livro de Receitas de Sofia Fernandes Prietto, Pelotas, 01/09/1939, 164 páginas, somente com receitas de doces. A autora, espanhola de Villafranca Del Bierzo, província de León, nascida em 22/10/1875, chegou ao Rio de Janeiro com 14 anos, no fim do segundo império em 15 de novembro de 1889, na companhia de sua mãe e irmãs para reencontro em Pelotas com seu pai e irmã mais velha, antes imigrados. Em 11/11/1895 casou-se com o pelotense Manuel Prietto Filho. Portanto, a organização do seu livro de receitas em 1939 é o resultado de cinqüenta anos de convivência com a cultura do doce em Pelotas. Suas receitas foram selecionadas a partir da experiência prática nos tachos de fogão e nas formas de forno das formulações da tradição oral transmitidas provavelmente pelo ramo de sua sogra Ritta Eufrázia, pelotense nascida em 1842, como também, por certo, no intercâmbio de informações com suas amigas. Confirmando o costume de explicitar a “rastreabilidade de origem do produto” lá estão Bolo Maria, Bolo Marieta, Pudim de Laranjas da Lola, Bolo Percília, Bolo da Prima, Ambrosias Ceny, Pão da Adelaide, Creme de laranja de Dona Ritoca, e o Bolo Dona Sofia a indicar no nome a garantia da autora do livro.
     Embora espanhola de nascimento, suas receitas revelam a fortíssima tradição portuguesa na abundância de gemas de ovos e claras em neve, poderoso recurso para comunicar leveza às farinhas grossas e açucares escuros daqueles tempos. Bom Bocado, Merengues, Pudim Lisboeta, Pudim de Ovos, Bolo Português para o Almoço, Ninho de Amor, Ovos Moles, Ambrosias, Fios de Ovos, Sericaia, Cuca Portalegrense (do Alto Alentejo), Massa Folheada a Portuguesa, são títulos da legítima cozinha portuguesa com certeza.
     A receita emblemática da família é o Pão de Ló de Senhora inserido, sintomaticamente, na primeira contracapa em página sem número e, por isto, não incluída no índice. É o carro-chefe que abre o desfile de bolos, pudins, tortas e docinhos. Em meados do século XX coube principalmente ao empenho de suas filhas Nilza Prietto Marques e Ceny Prietto Gameiro a continuidade e a afirmação do prestígio no seio familiar do Pão de Ló de Senhora.
     Este site, devidamente autorizado pelo atual depositário do Livro de Receitas de Dona Sofia, seu bisneto Pedro Antônio Marques Prietto, revela o segredo familiar deste bolo especialmente indicado para acompanhamento de chás:

PÃO DE LÓ DE SENHORA

Ingredientes:
     4 xícaras de açúcar
     2 xícaras de manteiga
     2 xícaras de amido de milho
     2 xícaras de leite
     4 xícaras de farinha de trigo
     4 colheres de chá de fermento em
        pó
     8 claras de ovo batidas em neve

Preparação:
     Batem-se bem o açúcar com a manteiga; dissolve-se o amido de milho no leite. A seguir, juntam-se todos os ingredientes pela ordem.
     Assar em formas untadas com manteiga e polvilhadas com farinha de trigo.
     Armar o bolo em camadas finas com ovos moles.

 

 


(*)Jean Baptiste Debret (Paris, França 1768 - idem 1848) integra a Missão Artística Francesa, que vem ao Brasil em 1816. Instala-se no Rio de Janeiro e, a partir de 1817, torna-se professor de pintura em seu ateliê. Em 1818, realiza a decoração para a coroação de D. João VI, no Rio de Janeiro. De 1823 a 1831, é professor de pintura histórica na Academia Imperial de Belas Artes, no Rio de Janeiro, atividade que alterna com viagens para várias cidades do país, quando retrata tipos humanos, costumes e paisagens locais. Por volta de 1825, realiza gravuras a água-forte, que estão na Seção de Estampas da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em 1829, organiza a Exposição da Classe de Pintura Histórica da Imperial Academia das Belas Artes, primeira exposição pública de arte no Brasil. Deixa o Brasil em 1831, retorna a Paris com o discípulo Porto Alegre. Entre 1834 e 1839, edita, em Paris, o livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, em três volumes, ilustrado com aquarelas e gravuras produzidas com base em seus estudos e observações.

Fonte: www.cliohistoria.hpg.ig.com.br – 29/10/2007

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Vasilhames – Debret

 

LIVROS CASEIROS
     Fundamentais para a história do doce pelotense são os livros de receitas manuscritos pelas donas de casa até às primeiras décadas do século XX, quando estes afazeres domésticos ainda não eram conteúdos da mídia impressa.
     Em livros ou cadernos pautados em linhas simples eram anotadas as receitas, em geral repassadas por amigas depois de degustadas em chás ou festas de aniversário ou casamento. Também era hábito o registro destas receitas no livro de casa, somente após a verificação prática da eficácia da formulação nas suas medidas e instruções de preparo. Neste repassar em corrente, ao longo do tempo e ao sabor dos testes e reproduções, sofriam ajustes em seus ingredientes ou variações criativas, em função das variações da qualidade dos insumos e da oferta de novos produtos no comércio de alimentos.
     Resulta desta prática, ser os livros caseiros o repositório do que havia de melhor e de mais genuíno da doçaria pelotense. São fontes obrigatórias para quem deseja pesquisar a evolução do doce tradicional de Pelotas, a partir da evolução de seus insumos. A conservação destes manuscritos familiares pelas novas gerações deve ser valorizada e incentivada, quer pela guarda dos descendentes ou por doação a entidades especializadas em documentação histórica.
     Finalmente, cabe comentar a eleição de determinadas receitas como “marcas registradas” de grupos familiares. Eram produções de topo de linha de seus livros, doces de presença obrigatória em qualquer reunião ou festa de determinada família cultuados por suas gerações. Daí a grande freqüência de nomes de pessoas e referências de parentesco nos títulos destas receitas caseiras: Bolo da Vó Fulana; Pudim da Tia Sicrana etc.

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