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     FEIRA DO LIVRO DE PELOTAS 2011: ABERTURA
     28/10/2011
     Zênia de León Soares


Foto: feiradolivrodepelotas2011.blogspot.com

DISCURSO DA PATRONA
     Não me é das tarefas mais amenas aceitar a idéia de estar diante de um público qualificado, seleto, como uma casta diferenciada de gente ávida por novidades de linguagem e de essência, voltados às letras e aos conhecimentos em geral, na condição de Patrona da Feira do Livro, e esse pensamento exigiu de mim fortes reflexões. Tomo como bondade daqueles que, segundo Maria Izabel Schjornak, a digníssima presidente da Câmara do Livro, a qual não conhecia pessoalmente, decidiram por maioria de votos indicar meu nome para patronagem neste evento. Agradeço. Volto à distinção recebida pela Câmara do Livro que me distinguiu, o que multiplica meu júbilo por escolhido fazer de meu trabalho – a História de Pelotas - uma constante. Agradeço, embora reconheça parcela de bonomia a unanimidade que me elegeu. Mas estou vaidosa e divido esta vaidade com a entidade a qual presido, a Academia Pelotense de Letras, e na despretenciosa obra que componho na escrita de 22 livros, centenas de textos na imprensa, palestras, conferencias, ativismo cultural, obra construída a mais de quatro décadas, que me fazem entender tratar-se de uma coroa invisível que me obriga a aceitar a honraria, pelo compromisso assumido por esse trabalho.
     Já que ousaram admitir-me, posso considerar, embora constrangidamente, tenha havido algum mérito nos trabalhos editados em quase cinco décadas. São milhares de palavras escritas, nos 22 livros e nos textos publicados na imprensa. Todavia, matérias fiéis à História, enquanto pesquisa, fiéis à boa linguagem, à exigência de conteúdo, dando enlevo ao conhecimento, sem o mais sutil aplauso à degradação da dignidade humana. Mas quem acreditaria que tais rascunhos iriam servir de base para a condução desta honraria? Também duvidei um dia quando me disseram: ”Teus textos figuram nas provas de vestibular para trabalhos dos candidatos”; “Teus textos são lidos na sala de aula”, e, até “Nos cursos de História, Arquitetura e de Turismo, os livros sobre Casarões de Pelotas são a nossa bíblia”. É bom ouvir, confesso, ouvir estas coisas que tão bem falam ao coração inda mais nos últimos anos de nossa existência.
     Já que ousaram escolher-me, aqui estou. Tomara que possa dar de mim como me doei em meus livros em prol da nossa cultura.
     Não seria egoísta e eis-me assim, diante da situação de ver reconhecidos alguns trabalhos dos quais me orgulho de tê-los concebido. É nesse pensar que me coloco ao inteiro dispor na Feira do Livro, para ser guardiã, apoiadora do bom alvitre de escrever, e de recepcionar a todos que buscam, neste recinto, a praça central da cidade, o conhecimento de que necessitam.
     Anualmente visito este lugar sagrado, estes corredores perfumados da floração dos jacarandás, em busca do saber. Um saber novo em cada livro, como um novo sabor, depositado pela inteligência e pelas mãos de quem se propôs a repassar o que lhe vai no intelecto. É quando a Feira do Livro se me afigura como uma imensa catedral do livro. No passa-passa de gente e borborinho, no silêncio dos que folheiam páginas na ânsia do conhecer. Entretanto, a Feira do Livro deste ano, tem um novo sabor. Há por todo o lado um ar de festa e um regozijo pelos duzentos anos de Pelotas. E nossos olhos se voltam na leitura dos feitos de pelotenses que deram início à trajetória de trabalho que fez chegarmos até aqui. Em seus muitos aspectos estudados, vamos nos deter ao talento e ao empreendedorismo dos letrados de época que foram o embrião da imprensa de hoje e da editoração livresca.
     A literatura esteve sempre presente demarcando as principais características que evidenciam cada período histórico da humanidade e em especial, desta cidade, quer na imprensa, quer na edição livresca. Nós não  percebemos que, às vezes, idéias mudam cabeças através dos  livros o que poderemos mostrar com a pergunta: Por que, de uma hora para outra, mudaram-se conceitos acerca de alguns heróis, de algumas idéias? Por que algum escritor comprometido com alguma facção qualquer, achou em denegrir a imagem de um herói, através de um livro, transformando-o de herói em bandido? Só quem se permite analisar, visa o bom raciocínio. Olhem que uma mentira repetida transforma-se em verdade certa. Entra aí a responsabilidade do escrever. O livro de Harriet Beecher Stowe, A Cabana do Pia Thomas, por exemplo, provocou uma guerra nos Estados Unidos entre sulistas e nortistas, envolvendo a escravidão naquele país.
     Na Grécia antiga, em Mileto, a poesia, através do poeta Frínico, influenciou tanto a comunidade com seus poemas tristes declamados nas ruas, que o povo vivia chorando, e em prantos que se multiplicavam, fez da cidade um “mar de lágrimas”. O governo obrigou o poeta a pagar multa pelo prejuízo de seus poemas... pelo poder das palavras. A responsabilidade do escritor é fundamental e não será pernicioso emitir conceitos negativos, de forma atraente, para enganar a quem lê? Essa separação dos dois pólos, esse discernimento, só se adquire através de leituras constantes. O mundo é ansioso e contestador. Sejamos também contestadores. Não sejamos pessoas “esponjas”: aquelas que absorvem o escrito, sem usar de crítica bem assegurada, que objetiva reflexão.
     A literatura tem uma potência extraordinária na formação intelectual dos indivíduos. Enquanto um livro habita em nós, enquanto o estamos lendo, vivemos seu universo e cristalizamos idéias. A Literatura atende a uma necessidade poética, alimenta a imaginação, porque as mídias produzem pouco imaginário. A literatura deve ser livre, deleitar e instruir, criar pensantes e perseguidores de verdades, universal na abrangência, mas falar num diálogo das diferenças, atendendo a diversidade cultural de cada povo e de cada indivíduo.
     A mente busca o conhecer, concentrada naquilo que  lhe fale à mente e ao coração. O homem recusa a pretensão de viver sem aprender. É de seu projeto, ou projeto da Criação, desde a infância. É então que pensamos que o que dá força ao processo vivencial é a aprendizagem para toda espécie de desafios, cada vez mais difíceis à medida que o indivíduo cresce. O indivíduo terá que crescer também em espírito e só trabalhando este espírito com boas leituras ele será capaz de crescer para competir, discernir, realizar. Discernir para não ser ludibriado, enganado com falsos conceitos e para que não se sujeite a mandos e desmandos incoerentes, para que não se deixe dominar por idéias esdrúxulas e alienígenas, exploração de qualquer espécie, e para comandar seu próprio destino com persuasão e justiça.
     O alvo é deixar às gerações que se sucedem, informações que venham sedimentar a compreensão e os conhecimentos, que são os princípios fundamentais da formação do indivíduo. Eis o grande mérito das Feiras do Livro: fomentar o estímulo ao acesso à leitura, o indivíduo e obras.
     Se o livro A Cidade de Pelotas, de Fernando Osório, nos ensina a história da gênese desta cidade, também os jornais antigos aqui editados nos levam às ações dos nossos antepassados.
     Em Pelotas antiga, colonizada por portugueses mas que tem nome espanhol e coração brasileiro, terra das charqueadas, dos negros no açoite e na labuta do charque, há testemunha de tanta  tradição cultural dos cinco jornais diários no passado, do teatro pioneiro, da embarcação a vapor primeira na Província, do grito de liberdade escrava antes da Lei Áurea; Pelotas das chaminés das antigas fábricas, das sinhás donas, das sinhazinhas, dos sisudos comerciantes da rua do Imperador e da rua Augusta, dos donos das casas de couros- fabricantes de arreios e catres, dos latoeiros, oleiros, tanoeiros... da Pelotas antiga dos negros tocando zabumba, dos vendedores de água em pipas, retirada dos chafarizes, a gritar seu pregões pelas ruas de chão: “Oi dona! É quarenta réis o balde!” Pelotas das danças dos negros no batuque, dos quicumbis e moçambiques em serenata em frente à casa do padre Siqueira Canabarro em regozijo ao seu engajamento à campanha das alforrias; da Pelotas de antanho dos homens a andarem pelas ruas portando a indefectível bengala, elegantemente, com cartola à cabeça, polaina sobre os sapatos, ar inconfundível de grande senhor; das mulheres de sombrinha rendada a protegerem-se do sol. Ah, a Pelotas antiga, da profusão de mastros das embarcações no porto, das barcas lotadas de charque em direção a Rio Grande ou São José do Norte e barra a fora. E chegavam bengalas com castão de marfim, prata e ouro, perucas, jornais e revistas parisienses, pratarias em baixelas e samovares, partituras de música para piano, rendas e bibelôs franceses pelos navios no porto. E vinham estribos de prata para os cavalos e luminárias para as carruagens que se faziam aqui mesmo, por artesãos franceses, pioneirismo na pequena Pelotas de antanho. Uma riqueza e um progresso que assombrava o visitante e que causava inveja às outras cidades, até a capital que não possuía bonde de dois andares como a progressista pequena Pelotas.
     Da Pelotas do som de vozes dos barqueiros que navegavam cantando nas veias do São Gonçalo; dos pregões dos vendedores de laranjas e doces, do ruído infernal dos bondes sobre os trilhos, dos apitos das fábricas, da música que vinha do coreto ali em frente à Biblioteca, do ruído das patas dos cavalos nas pedras da rua Augusta, ruído das rodas dos faetons em trânsito levando gente apressada à missa na igreja matriz...
     Ah, não vivemos aquele tempo mas, que saudade pelo que nos foi passado através dos livros que lemos! É uma saudade cósmica, de algo que não vivenciamos mas que soubemos através da leitura. Da leitura que nos transmitiu emoções e nos reportou ao longevo ciclo dos tesouros da memória do passado.
Hoje a cidade mudou: os automóveis tomam conta das ruas e os ruídos são outros...
     Nós não queremos que nosso viver, que as instituições e tudo o que forma o conjunto social e cultural de uma cidade seja destruído como um castelo de cartas ao primeiro sopro do vento. Por isso sedimentamos saberes que fazem raciocinar, e que nos dão forças para reagir. O esforço ganha impulso quando existe consciência do trabalho, fortalecido de valores, firmado em conceitos certos que só se adquire com instrução: ler, estudar, refletir,discernir.
     Tratemos de falar sobre o livro. Em Pelotas nasceu primeiro a imprensa, com o primeiro jornal, O PELOTENSE, em 1851 (embora a imprensa tenha surgido na província em 1829, na capital, com o Diário de Rio Grande). Sem exageros de opinião, mas não há como omitir uma relação que liga Pelotas à fundação do jornalismo brasileiro: em junho de 1808, era lançado em Londres, o famoso e importante Correio Brasiliense, dirigido e redigido por Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça - Pioneirismo: Somente três meses depois, com a transmigração da Família Real, vai se verificar a criação da Imprensa Régia no Brasil.
     Hipólito, nascido na colônia do Sacramento, viveu entre os 3 aos 18 anos de idade na estância dos pais, dentro dos limites do futuro município de Pelotas e recebeu educação por influência de seu velho tio, formado em Coimbra, o padre Doutor. Hipólito José da Costa, o patrono da Imprensa Brasileira figura como o primeiro exemplo de intelectual da região. Seguem-se o primeiro jornal, O Pelotense, em 1851: O Noticiador,em 1854, Revista Aribá, Brado do Sul, em 1858, Diário de Pelotas, Correio Mercantil, Onze de Julho, A Discussão, A Pátria, a Ventarola, e outros, quando a cidade de Pelotas chegou a ter cinco jornais diários em determinado tempo e mais tarde até sete jornais diários. Era realmente uma potência literária que impulsionava pessoas a lidar com a imprensa. E veio o jornal A voz do Escravo, tal a importância das campanhas das alforrias; e veio a Revista Alvorada, da comunidade negra do Clube Fica aí com grande prestígio na época. Mas, a história do livro está associada indissoluvelmente à história do jornal. Em Pelotas, seguindo a regra, foi das tipografias de jornal, que saíram os primeiros livros. É mais provável que o primeiro livro editado em Pelotas tenha sido o livro-Resumo da História Universal, livro de estréia de Carlos von Kozeritz, por volta do ano de 1851. Também o professor Antônio José Domingues mandara imprimir alguns poemas em opúsculo na tipografia do jornal O Pelotense, de Cândido Augusto de Mello. Neste livro achava-se escrito uma saudação ao imperador e a letra de um hino em homenagem ao Conde de Caxias.
     Seguiram-se as publicações de livros nas gráficas de jornal, até que se fundassem editoras: a Universal, de Echenique & Cia  e Carlos Pinto & Cia, as primeiras editoras da cidade.
     É que houve em Pelotas, nesse período, um obstinado, às vezes exagerado culto às letras. Esse culto, aliás, ultrapassou os limites citadinos, como reconhece Guilhermino César, comentando a obra de Bernardo Taveira Junior: ”Teve ele o condão de despertar interesse sem precedentes” (sic), ainda mais por ser o seu “centro de irradiação a cidade de Pelotas, cujo adiantamento cultural, naquela época, influía a vida de toda a Província” (sic). É dessa época do culto às letras na cidade que se permitiu acrescentar ao “cognome Princesa do Sul”, o cognome de “Atenas Rio-grandense”. Só poderia ser Atenas uma cidade que concentrava com tanto orgulho os valores intelectuais desta Província. Uma província que sempre fora Esparta com guerras de fronteira, cidades originárias de acampamentos militares, graças aos seus valores militares. Mas Pelotas, como Atenas, nasceu da cultura e não de acampamentos militares ou de contendas guerreiras.
     Incluímos nessas primeiras produções jornalísticas, os jornais Diário Popular fundado em 1890 e que persiste até hoje, com 121 anos de existência, prestigiando a nossa cultura inconfundivelmente, e o jornal Opinião Pública como dos grandes pioneiros que alcançaram nossos tempos. Note-se que entre os jornais antigos figuravam jornais de classes, comunitários ou religiosos: A voz do Escravo, como se vê, tratava-se de um periódico ligado ao negro; o Templário, ligado à maçonaria; A Palavra, ligado à Igreja Católica; Estandarte Cristão, ligado à Igreja Anglicana; Revista Agrícola, uma publicação da Escola Agrícola. Como sentimos, havia interesse na divulgação das comunidades específicas, como em nenhuma outra cidade da Província.
     Hoje a cidade possui dois jornais diários: Diário Popular e Diário da Manhã, o que diferencia ainda a nossa cidade das outras cidades do interior do Estado.
     Nas primeiras produções literárias em livros, incluímos o trabalho do charqueador Antônio Gonçalves Chaves, que em 1822 escreveu as suas Memórias Ecônomo-políticas, em cinco Volumes que até hoje surpreendem pela amplitude de informações e pela prosa singela com que foram vazadas. Ainda dentro das primeiras iniciativas na escrita de livros na primitiva Pelotas estão Clarinda da Costa Siqueira, em obras póstumas; Vitor Valpírio, Juvêncio Paredes, Colimério Pinto, Francisco de Paula Pires, Francisco Lobo da Costa, que atingiu fama e prestigio em toda a Província pela divulgação de seus poemas tocantes e românticos; Paulo Marques, Márcio Dias, e tantos outros que deram prova da exuberância literária nos primeiros tempos de Pelotas, exuberância que voltou mais tarde com outros autores contemporâneos. João Simões Lopes Neto, entretanto, sobressaiu-se como escritor fluente, considerado a maior expressão da literatura regionalista gaúcha. Assim que, no penúltimo decênio do século XIX, a literariamente ativa cidade de Pelotas pode dispor de forma concomitante, de escritores como Lobo da Costa, um expoente do Romantismo e Paulo Marques, um precursor do Realismo, dentro da literatura brasileira. Ainda João Simões Lopes Neto, a expressão máxima da literatura regionalista, cujos textos influenciaram até nossos escritores regionalistas gaúchos atuais, incluindo o grande Guimarães Rosa, mineiro, um contista que se antecipou ao modernismo de 22 com sua obra renovadora. Referimo-nos aos escritores do passado, alicerces da literatura atual, não devemos entretanto esquecer que só no Salão do Livro do Autor Pelotense realizado anualmente pela Academia Pelotense de Letras, foram catalogados mais de 200 escritores locais atuais, nas diversas áreas, desde a didática da educação, à de ficção, à história e geografia, filosofia, pedagogia, ciências gerais etc.
     Para encerrar, a esse pioneirismo literário, o orgulho pelotense pelo  grande e verdadeiro legado de cultura.  Nós nos ufanamos dessa gama de escritores que comparece com seus livros na Feira do Livro de Pelotas, desde o pioneirismo literário, para os quais damos nosso aplauso. Hoje os autores modernos estão aqui para serem representados em seus livros. Que se sinta a pujança do livre pensamento escrito, do talento e da intenção de repartir idéias, estímulos e entretenimento.

Obrigada.

Zênia de León

 

          Há um livro publicado em Pelotas que antecede a publicação de O pelotense (1851) e do livro de Carlos de Koseritz. Trata-se de "Exposição dos elementos de aritmética", de Antônio Luís Soares, publicada em 1848 na tipografia de Luís José de Campos.
Simone Xavier Moreira - Pesquisadora
Pelotas / RS

          O primeiro livro de Pelotas não é um anterior ao do Koseritz?
          Já li isso em algumas dissertações defendidas na FURG. A UFPel deve ter essa informação correta...
Inês Porto – Estudante
Rio Grande / RS

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