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     O CANTO DA MEIA-NOITE
     03/02/2018
     Zênia de León

     O assunto requer que o encaremos sob dois aspectos. Um entre autores regionalistas, pesquisadores e poetas, e outro, na tradição oral.
     Dados colhidos em alguns autores regionalistas dão conta de que o canto da meia-noite significava um corte existencial, quer dizer, uma parada para refazer, como um recomeçar e dar às costas ao passado. Dir-se-ia que ao toque da meia-noite, de repente devia-se largar de pensar no passado, deixar coisas ruins ou boas e seguir nova vida. A partir daquela meia-noite, vida nova. Esse é o lado romântico de uma questão que se estabeleceu, dentro de um folclore regional, para explicar o canto da meia-noite quando tudo parava naquele horário e a partir daí, novos rumos.
      Lemos em Barbosa Lessa, Vargas Neto, Bernardo Guimarães, Coelho Neto (Fogo Fátuo), Agostinho Della Vechia (Vozes do Silêncio), até Simões Lopes, citações breves, passadas leves sobre o assunto que somente servem para identificar a lenda, sem detalhamento de fatos. O assunto não fora, percebe-se, ainda bem explorado por esses autores.
     Colhemos dados recentes afirmando que foi na década de 70 que Jacema Rodrigues Prestes - Professora Emérita - colheu a canção que vem sendo preservada nos terreiros de umbanda e passou a ser adotada na troca da guarda do fogo de chão, dentro dos CTGs, que se processa justamente à meia-noite, em tempo recente.
      Canto da meia-noite - canção lamento afro cantada pelos escravos antes de irem para o trabalho nas charqueadas:

Era meia-noite
A carreta andou, a carreta parou
Lá na encruzilhada
Quando o boitatá passou.
Credo ”im cruiz” Ave Maria
Velei-me Nossa Senhora
Tomara que acabe o dia
Pra esse bicho ir embora.
É meia-noite
Meus “oinhos cegou, meus oinhos cegou”
Lá na charqueada
Quando o homem branco chegou
“Me protege do chicote
Meus santinhos orixá
Peçam que ele não me bata
De chicote até matá”.

      Interpretação: Observa-se que a fala do escravo faz uma comparação do boitatá com o branco feitor. Os dois causam medo. O boitatá é o mesmo fogo-fátuo, de luz brilhante. Na realidade, o escravo associa a figura do boitatá, que é uma luz que cega os olhos, à figura maléfica do carcereiro que causa o mesmo medo, cega como uma luz de assombração na transferência do sentimento que faz o escravo. E pede proteção contra as maldades praticadas pelo feitor ou carrasco, na charqueada. Mas aí sucedeu uma mistura de conceitos que, sem descaracterizar a lenda, fortalece a tradição. A história e a tradição oral relatam que os negros acrescentaram suas legendas, suas crenças para espantar o medo no entoar canções, tal a necessidade de proteção, apelando para o sobrenatural, antes do trabalho causticante da charqueada. Invocavam também assombrações.
      Por que a tradição do canto da meia-noite em Pelotas? Na terra das charqueadas os acontecimentos e a realidade do trabalho áspero, forçado e violento gerava medo entre os trabalhadores obrigados ao serviço, sem recuos. Os escravos temiam a hora do início do trabalho marcado pelo apito que tocava com um som onomatopaico, imitando o berro do boi, à meia-noite, para o inicio do trabalho. Esse apito tocava medonho nos ouvidos dos escravos que sabiam, deveriam sair das senzalas e chegar ao trabalho ali para a charqueada. A tradição oral, nas vozes dos descendentes dos que aqui trabalharam nas charqueadas, nos conta que os escravos faziam uma como que preparação antes do trabalho. Cantavam e dançavam o canto da meia-noite, que não iniciava à meia-noite, quer dizer, esse ritual deveria parar à meia-noite, isso sim, quando tocasse o apito, hora em que se escutava o primeiro apito da fábrica de charque. Cantando e dançando, invocavam seus protetores orixás. iansã, xangô (deus do trovão), ogum, oxalá... E, para reforçar o pedido, incluíam fantasmas de suas crenças, para sentirem-se mais seguros ainda de que estariam realmente protegidos dos chicotes dos feitores, das torturas gerais, bola de ferro e grilhetas. Cantando e batendo com o pé no chão, invocavam o João-galafoice, a tia-mina-de-SãoJorge, a mula-da-terra, o lobisomem, os duendes das águas. O fogo fátuo, a mula-sem-cabeça, o negrinho-do-pastoreio, e personagens de maldições macabras que conheciam. Tudo era chamado para afugentarem o medo do que viria para eles depois da meia-noite na detestável labuta. Era o desespero escravo aos maus tratos do feitor.
     A troca da guarda do Fogo-de Chão que se faz à meia-noite nos CTGs adotou, faz algum tempo, a música que invoca os santos orixás e os fantasmas da fé africana, sem entretanto aludir a crença, unicamente para marcar a transição da meia-noite. Nada a ver com crenças gerais e sim com os atos instituídos nas tradições gaúchas.
     Hoje, músicas populares começam a aparecer motivadas por esta tradição, mas os autores destas produções estão deturpando um pouco a tradição levando para o lado do medo e da assombração, com o fim de sucesso nos festivais de música. Fazem sensacionalismo com um assunto que diz da ingenuidade do trabalhador escravo e de seus sentimentos.
      Entretanto tudo não passava de justamente o contrário, era um pedido de proteção aos maus tratos dos feitores antes do trabalho e de reforço para sustentarem o sacrifício que o trabalho impunha. Este aspecto é de grande importância histórica quando se sabe que em Pelotas, ao tempo das charqueadas, estas eram tidas como penitenciárias, não holocausto porque não vinham condenados a morrer, mas para trabalhar porque os donos dos escravos, essa mão de obra sacrificada, mas mártir, fazia de tudo para sugar-lhes a vitalidade para ascensão econômica própria. Não iriam acabar com o fator mão de obra adquirida por um custo elevado, a compra do escravo era um patrimônio, matando-o de propósito, mas acabavam levando o escravo-trabalhador ao definhamento físico que lhe encurtava a vida.
      E dá-se o Canto da Meia-Noite, uma tradição nascida em Pelotas e preservada pelo Movimento Regionalista.

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