PONTE DOS ESCRAVOS, construída em 1875 na Estrada da Costa, na Sanga do Passo Fundo, por mão-de-obra escrava pertencente ao charqueador Joaquim Assumpção. Foto de 2003.

Zênia de León

     Charqueadores como o Comendador Joaquim Assumpção, construíram pontes. Este foi quem mandou construir, pelo braço escravo, a Ponte dos Escravos (pela lenda dos escravos que choram em baixo da ponte), na Estrada da Costa no Areal, em 1875.
     Por estas razões, não é de se admirar tenha sido a Ponte dos Dois Arcos feita por mão escrava. Entretanto, tudo nos leva a crer, tenha ela sido construída bem antes que a Dos Escravos, devido à importância da estrada a que servia, como o foi. A construção da ponte foi fundamental para o desenvolvimento das atividades charqueadistas em fim, para atender ao aglomerado populacional que se formava. Enquanto passavam carretas abarrotadas de carga, boiadas, cavaleiros, negros, comerciantes, tropeiros, a economia crescia e dava surgimento a uma cidade. A estrada do Passo dos Negros e a Ponte dos Dois Arcos constituem-se fatores fundamentais ao apogeu alcançado na região.
     Charqueadas havia pelos dois lados do Passo dos Negros. O gado, vindo da Tablada, local de comercialização do gado, vinha pelo Corredor das Tropas, hoje Avenida São Francisco de Paula, e descia para a estrada do Passo dos Negros, sendo "tocado" pelos tropeiros para as charqueadas das margens do Canal São Gonçalo e rio Pelotas, pela Estrada da Costa, passando pela ponte dos Dois Arcos.
     Assim conta a história: "Para os estabelecimentos que não eram contíguos à Tablada, existia uma estrada, por mandato da Câmara, na parte central do lado oeste, ensaibrada na sua maior parte, que dava saída ao gado para os saladeiros do São Gonçalo e rio Pelotas". Logradouro Público - n 609.M.12. E 33.2 Cartório do Civil e do Crime - 1825. MEDIÇÃO APGRS - Gutierrez, Ester - Pesquisa. Livro: Negros, Charqueadas e Olarias.
     Ata n.° 38 - Do Livro n° 12, de Atas da Câmara de Vereadores de Pelotas, página 129 - 9 de janeiro de 1854, lê-se:".................. Esta Câmara manda o fiscal da fazenda da cidade e o arruador examinar a estrada do Passo dos Negros no lugar onde se acha um grande tremedal e que apresentem o quanto antes um relatório indicando a quais espaços que precisam dessa ponte e a despesa que se deve fazer e que a câmara nomeie uma comissão para entender-se com o vereador Manoel Batista Filho a cerca da referida área, providenciando o terreno preciso para melhoramento da referida estrada. A ponte foi aprovada." Seguem-se as assinaturas de: Vicente José da Silva Maia, Dr. Serafim Róis Azevedo, José Antônio Mendonça, Joaquim José de Assumpçâo e Dr. Miguel Barcellos.
     A ata de 14 de janeiro de 1854. cinco dias depois de aprovada a construção da ponte diz: "A Comissão encarregada da estrada do Passo dos Negros deu a seguinte palavra: A Câmara encarregou de examinar o lugar mais adequado para a construção de uma ponte pretendida na estrada do Passo dos Negros, vem de solicitar escravos dos senhores charqueadores da margem do São Gonçalo para a obra, a fim de dar conta da estrada e dos trabalhos. Foi no lugar indicado e tratando de examinar a quem mais convinha para a construção da mesma ponte e cuidar dos baixios, ver que caminho ser preferível que é aquele perto a um açude junto do Sr. Manoel Baptista Ferreira, entendendo-se que com, no final da obra, se fará uma praça que servirá para lugar público. Terá a ponte abóbadas com 60 palmos de comprimento por 60 palmos de altura"
     Ata 44 - 14 de fevereiro de 1854 - "A sessão dava o apregoamento em primeira praça e arrematação da obra na estrada do Passo dos Negros".
     Em ata 45 também há referências à ponte, citando apreciação e aprovação de orçamento.
     Na ata de número 46 - 16.02.54, encontra-se uma curiosidade: apreciação e aprovação de uma praça no Passo dos Negros, sugerindo que seja amurada por causa do cerco das águas. Paralelo ao estudo de dados sobre a ponte concluímos que a região do Passo estava sendo povoada e que havia a preocupação, mesmo que de modo incipiente, com urbanismo.
     Na ata de 15 de abril do mesmo ano falava-se em "orçada a construção em 1:453$840".
     Em ata de número 56. em 10 de maio de 1854 lê-se: "Providência n° 7. A Comissão a despender mais a quantia de 1:753$40 para a conclusão do bueiro da Estrada do Passo dos Negros". Aqui a ponte aparece chamada de bueiro e entende-se que sua construção está no fim.
     Não se lê, nas atas seguintes, qualquer referência à ponte. Como não era comum inaugurar-se ponte ou bueiro cuja conclusão esperava-se com ansiedade devido a urgência do uso, conclui-se que estivesse pronta nestes últimos três meses.
     Conclui-se enfim, que a ponte dos Dois Arcos foi construída em seis meses pelo braço escravo oriundo das charqueadas de Domingos de Almeida, Bernardino Barcelos, João Jacinto de Mendonça e outros.
     Reveste-se de importância a ponte dos Dois Arcos a medida que a olharmos como fator de desenvolvimento na época de primitivos recursos. Ela faz parte dos Caminhos da História como ligação necessária, empenho sistemático. trabalho, economia. Quando charqueada é vista como a gênese do escravismo e aspecto altamente importante nos estudos etnográficos e antropológicos, e quando por esta razão o Rio Grande do Sul entrou na economia mundial competindo com a descoberta do ouro em Minas Gerais, um simples objeto de travessia, uma ponte, centraliza-se como pivô de toda uma estrutura econômica e social.

     Agosto/2001

PASSO DOS NEGROS
     Passo dos Negros foi porta de entrada do gado oriundo dos Campos Neutrais e Maldonado, e do negro escravo africano, desembarcado dos navios negreiros na barra do Rio Grande. Tanto o gado como a escravaria, ultrapassavam o canal no lugar de travessia a vau, palco de grandes acontecimentos históricos.
     Logo que estabelecidas as primeiras charqueadas, penetrava a tropa, de criação riograndense e platina, pelo lugar do São Gonçalo "onde se abre a boca do seu tributário, o chamado arroio Pelotas". A Coroa, para evitar contrabando, tanto de gado como de negros escravos (considerado mercadoria valiosa), instituiu no conhecido Passo do Neves, um imposto de passagem. O local mudou de nome pela jocosidade popular para Passo Rico em razão do fabuloso rendimento proveniente do fisco.

      Construída em 1854, a PONTE DOS DOIS ARCOS representou um fator de fundamental importância para que a cidade de Pelotas se desenvolvesse a partir da indústria do charque. Antecedentes-motivos que levaram a execução-efetivação-conclusão.


Foto do arquivo de Zênia de León


Foto do arquivo de Zênia de León


Foto-reportagem do Diário Popular de 08/06/1997, mostra a Ponte dos Dois Arcos, no antigo corredor das tropas, vendo-se no fundo a esquerda o Engenho São Gonçalo do Cel. Pedro Osório.
Foto: Dalnei Oliveira/DP

 

 

     A Lei nº 4.977/03, de autoria do Vereador Gilberto Cunha, aprovada por unanimidade na Câmara Municipal de Pelotas, e que institui o Roteiro das Charqueadas como referência de fatos históricos e de bens materiais e imateriais pertencentes à cultura do ciclo econômico do charque no Município de Pelotas, marca para as gerações atuais e futuras o principal cenário espacial do ciclo econômico do charque.
     O Roteiro das Charqueadas tem por finalidade dar orientação geográfica às atividades educacionais, culturais, turísticas, sociais e econômicas, com vistas ao estudo, conhecimento, valorização, preservação e utilização da memória do ciclo econômico do charque no Município de Pelotas.
     Dentro deste objetivo, no seu Artigo 4º, a Lei do Roteiro das Charqueadas destaca como local de referência, entre outros, a Ponte dos Dois Arcos, no antigo Corredor das Tropas, e a Ponte dos Escravos, na Estrada da Costa sobre a Sanga do Passo Fundo.
     Desta forma, por ato do Poder Público Municipal, estas duas pontes foram instituídas como marco cultural e os seus valores deverão ser respeitados e destacados.

 

 

     Entretanto, não só ao contrabando e ao pedágio essa porta favorecia: também à riqueza local. Por ali, além de um intenso movimento de gado, também o de escravos, que atraia compradores e vendedores desse produto humano. Tão grande a concentração de negros que chegavam e à disposição de compradores espalhavam-se acolherados em levas como tropa em leilão, num desfile macabro de mercadoria em exposição, que o lugar mudou para Passo dos Negros. Movimentavam-se levados pelos feitores para as propriedades, e estavam chegando mais e mais. O lugar jamais perdeu esta denominação que identificou por longos anos a exploração do regime escravocrata em Pelotas, razão e motivo de sua antiga riqueza, mola mestra do apogeu sócio-cultural-econômico de uma cidade.
     Numa gravura, Debret, o navegador cronista francês, retratou o Passo dos Negros assim como o viu, em 1810.
     Em 1820, Saint Hilaire, o sábio naturalista francês, encontrou dezoito charqueadas esparsas num povoado com mais de cem casas. (História e Tradições do RG - Magalhães, Mário Osório - 1981)
     Nas Atas da Câmara - 21 de outubro de 1844: "Passo dos Negros, porta para o sul, por ser o lugar onde o S. Gonçalo oferece mais vadeação, primitivo Passo do Neves, depois Passo Rico, pelo fabuloso lucro que oferecia ao arrematante do direito de cobrar passagem".
     Fernando Luís Osório - Cronologia Histórica de Pelotas, in Almanaque de Pelotas de 1927: "Ainda guardando a alcunha de "Passo Rico", o Passo dos Negros, o pedágio sobre ele decretado era em Lisboa, no ano de 1814, ponto em pública arrematação".
     Mercadorias como charque, açúcar, sal, erva-mate, gado, escravos entravam pelo ponto de travessia, chamado porto Passo dos Negros. Por esse local transitavam barcos, pequenas canoas ou mesmo, o gado, que era atravessado a nado.
     O grande movimento e aglomeração humana provocou um número de habitações que poderia ser chamado de aldeia. Pelas margens disseminavam-se casas, capelas, em torno das charqueadas, habitações aumentavam o seu complexo. Em 1820 houve até um plano urbanístico na região do Passo dos Negros, com o desenho de seis quarteirões, com direito até a uma rua da praia. O projeto só não chegou a ser posto em prática pela queixa de alguns do mau cheiro e mau aspecto do lugar. Mas, tudo o que entrava do sul, cargas que se acomodavam em carretas, negros e gentios, tomavam o rumo oeste, por onde? Pela estrada do Passo dos Negros. Uma estrada que entrava município a dentro, em meio ao banhado do São Gonçalo, em direção às charqueadas ribeiras e ao Areal.
     A estrada congestionava-se. Cavaleiros, carretas, gente a pé. E o gado a invadir e atropelar que vem e quem vai. O gado? Também em direção contrária, vindo da Tablada, região de grande fluxo de tropa vinda do interior da província. Muitas vezes, a gadaria se aglomerava à espera da passagem de outra leva pela estrada que se tornava estreita entre banhado e reboleiras de mato. A Tablada "enviava" muitas e muitas tropas de gado diariamente em período de remates e matança. O trânsito constante danificava a cada ano a insipiente estrada, principalmente num baixio, quase à chegada do porto do Passo. Fez-se necessário construir uma ponte sobre o passo do banhado em que muito beneficiou as atividades no porto.
     Muito antes de existir Pelotas como cidade, foi o Passo dos Negros o primeiro aldeamento que tivemos na zona do São Gonçalo, precisamente no Passo dos Negros. Com o trabalho escravo gratuito, começou a se erguer a fortuna de vulto da localidade. A concentração de negros em São Francisco de Paula, Pelotas, no ano de 1814 era de uma população de 2.275 indivíduos sendo que 1.226 eram escravos.
     O charque, rendendo lucros, estimulava os industriais charqueadores a investir em melhores condições, não para o operário escravo, mas de andamento das atividades com vistas à maior produção. Houve a tentativa de melhorar as condições técnicas de produção para uma melhor aparência e durabilidade do charque para competir com o mercado externo. O capital lucrativo era cada vez mais empregado na compra da mão-de-obra escrava. O comércio negreiro atingia patamares nunca antes imaginados. Os negros vinham dos mercados centrais do Brasil, sendo trazidos para Rio Grande e de lá, chegavam pelo Passo dos Negros.
     No período das entre-safras, de maio a outubro, o escravo era desviado para o trabalho nas olarias e nas construções. Daí surgirem sedes de charqueadas monumentais com altas chaminés, galpões, tanques de salga, pontes e bueiros. E começaram a surgir casarões requintados na cidade, para moradia, segundo estilo clássico, por influência européia.

 

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